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Casagrande: "Eu superei a grande luta da minha vida"
Em entrevista a GaúchaZH, comentarista revela como encarou a batalha contra a dependência química
O All Star é inegociável. As roupas fora da TV são quase sempre pretas. Combinam com os anéis de caveira nos anulares. Walter Casagrande Júnior é rock'n'roll. E transparente ao máximo.

Nos últimos anos, ele travou uma luta contra seu pior adversário: a dependência química. Mas está vencendo. Ganhou sua própria Copa do Mundo ao sair e voltar sóbrio da Rússia  — como deixou claro logo após a partida final, no último dia 15, em depoimento que emocionou o país e sobre o qual conta detalhes nesta entrevista.

Antes da Copa, fiz uma série para o Fantástico com o doutor Dráuzio (Varella). Foram quatro episódios sobre dependência química. O dia do meu embarque para a Copa coincidiu com o da gravação do último episódio. Falei que estava indo sóbrio e que voltaria assim para casa. Era o meu primeiro grande evento fora do Brasil, em que teria de lidar sozinho com o problema. Em 2014, no Brasil, eu tinha minhas psicólogas do lado. Qualquer problema, era só ligar. Na Olimpíada, em 2016, o mesmo. Mas, na Rússia, o que seria? Foram 10 anos de preparo para se livrar do vício, fazendo recuperação, para ter essa grande prova. Quando o juiz apitou o final do jogo, passou um filme na minha cabeça. Pensei: consegui! Daí me emocionei, porque sofro com isso há décadas. Minha mãe falava: "Só vou morrer quando ver o Waltinho sóbrio". E ela morreu e não conseguiu isso. Eu usei drogas por décadas, dos 15 anos até 10 anos atrás. Em São Paulo, todos sabiam e falavam: "Casão tá muito louco aqui, tá muito louco lá". Assim era. Fui internado e resolvi entrar numa luta honesta para me recuperar. Não tem nada mais importante na minha vida hoje do a que minha sobriedade.
Como as drogas entraram na sua vida, justamente no período em que era atleta?
Não sei como foi. Eu tenho uma força física muito grande. Treinava muito, gostava de treinar, futebol era e é a minha vida. As drogas são uma vida paralela que levei. Claro que, hoje, passado tudo o que passei, olho para trás e penso: pô, se não tivesse me envolvido com drogas, talvez meu rendimento como atleta fosse maior, talvez meu tempo como jogador fosse maior. Durante minha carreira, não senti nenhum problema. Quando fui para a Europa, em 1986, fiquei totalmente limpo. Joguei em Portugal e na Itália até 1993, sempre limpo, dedicado ao futebol e à família, sem problema algum.
Por que, na volta ao Brasil, o problema voltou?
Quando voltei, para o Flamengo, foi tranquilo, não tive problemas com drogas. Foi no Corinthians, morando em São Paulo e retomando o convívio com amigos de infância. Tínhamos um grupo, estudamos juntos, eram homens e mulheres... Com o passar do tempo, fomos todos nos envolvendo com drogas. A turma se dividiu em determinado momento: havia aqueles que não se envolveram com drogas e aqueles que se envolveram. A gente convivia da mesma maneira, viajávamos juntos, mas tinha essa divisão. A responsabilidade, é claro, é minha. Não é deles. O que piorou foi parar de jogar futebol. Parei em 1994, daí surgiu aquele vão enorme, não tinha mais treino, nem jogo. A rotina mudou. Num primeiro momento, você para de jogar e pensa: agora vou me divertir! Mas você não sabe fazer isso. Você viveu a vida toda treinando, jogando, viajando. Não sabe viver sem o dia a dia do futebol. Foi aí que me perdi. Entrei na TV Globo em 1997, tive uma estabilidade, mas, mesmo assim, fui me envolvendo mais com droga. Até chegar ao caos.
Como você administrava a rotina de trabalho em meio a esse caos?
Estou há 21 anos na TV Globo. Por muito tempo, tudo corria bem. Houve momentos desgastantes, em que eu dormia menos, tinha de me esforçar mais para trabalhar, ficava muito cansado. Mas levava. A partir de 2006, comecei a descer a ladeira. Chegou a um momento em que eu não conseguia mais trabalhar. A Globo me deu uma licença. Foi quando veio o caos mesmo. Era maio de 2007. Fui internado em setembro daquele ano. Foi minha primeira grande internação. Só saí em outubro de 2008.
Em geral, o viciado é internado por pressão dos outros. Sua última internação, em 2015, se deu por iniciativa própria. Como foi isso?
Foi em setembro de 2015, fiquei internado até março de 2016. Eu queria resolver o problema mesmo. Definitivamente. Era essa a intenção.
Como foi esse processo de perceber que poderia levar uma vida normal?
Eu fazia terapia com psicólogo e psiquiatra, na clínica em que fiquei internado, em Itapecerica da Serra (SP). Numa quinta-feira, fiquei com fissura de usar cocaína. O dia inteiro. Mas resisti, aquela puta luta. À noite, fui jantar com o Fágner. Fui para casa, dormi e, na sexta-feira, cedinho, fui para a terapia. Expliquei para eles que, na segunda, eu iria para a Argentina, trabalhar no jogo da Seleção Brasileira, que seria na quarta. Eles disseram: "Beleza, se você quiser vir para cá, passar o fim de semana, fica à vontade". Na volta para casa, fiquei pensando: cara, já foi difícil enfrentar a quinta-feira toda. Hoje é sexta. Vou ter de resistir até segunda. Cheguei em casa e fiz a mala. Voltei para a clínica. Era setembro. Só saí de lá em março. Foi natural, eu não estava em crise, não estava no fundo do poço. Saía para trabalhar, para ir ao cinema, ao teatro. Minha vida profissional seguiu a mesma. O que mudou era que dormia na clínica. Isso me ajudava, era o que eu queria. Por isso essa rotina foi tão duradoura - foram sete meses.
Você ainda trava uma luta diária com a dependência ou essa fase foi superada?
grande luta da minha vida foi pouco antes da Copa, em Liverpool, no Cavern Club (onde os Beatles tocavam). Eu estava lá, no lugar icônico do rock'n'roll, e o rock para mim significa muito, todo o meu estilo de vida se baseia nele. Era um sonho da minha vida estar ali, entrar no início da noite e só sair às 7h. Então, muita coisa podia acontecer lá. Podia não acontecer nada, mas uma noite inteira ali era algo arriscado para mim. Era difícil renunciar àquela situação. Foi a renúncia mais difícil da minha vida. Hoje em dia, renuncio a qualquer coisa facilmente. Vou a um bar com amigos, o pessoal está tomando cerveja, e para mim é fácil renunciar. Não preciso, não quero. Agora, no Cavern Club, eu quero. Essa foi minha grande luta. E eu superei a grande luta da minha vida. Foi uma luta que eu não ganhei, mas na qual também não levei tanta porrada.
Há muita dependência química no país. você é uma referência nesse sentido.
Como trabalha com isso?
Batalho muito contra isso. Muita gente me procura, principalmente depois da final da Copa. Muitos me pedem dicas, contam histórias de familiares. Umas cinco ou seis pessoas de lugares diferentes me falaram que foi o meu depoimento na Rússia que fez um familiar se internar. Isso me orgulha e me emociona. Tenho na cabeça um rascunho de um projeto, um protótipo de política antidrogas. Precisamos começar pela prevenção do uso junto à garotada. E tratar quem já é usuário. O combate ao tráfico é outra coisa. Não tem nada a ver com política de drogas, é combate militar, de facção criminosa com o Exército. O usuário é outra coisa, precisa ser acolhido. E o país precisa se envolver na prevenção. Duas vezes por semana, alguém visitaria as escolas para falar sobre drogas com a criançada. Hoje, essa criançada não é mais boba. Pode discutir as coisas.
Como tudo aquilo que se viu no seu desabafo, ao final  da Copa da Rússia, transbordou ao vivo?